segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

tia

 batom vermelho carmim

aveludado e vinho tinto 

o mapa astral colocado ao lado do colar de sementes 

em cima do móvel de madeira verde claro (ou era escuro?)

descascando

 

o livro do Balzac, da Ana Cristina César 

minha primeira cópia de O Pequeno Príncipe com sua dedicatória 

 

lembro da minha saia plissada 

daquele dia que você me levou na visita guiada ao teatro municipal 

 

em doses homeopáticas

ou até cirurgicamente calculadas pelos meus devaneios ansiosos

sinto no meio do peito e naquele nó que dá na garganta 

suas moléculas gradativamente se dissipando 

e se convertendo no corpo rígido da sua ausência 

 

lembro daquela frase sobre se libertar da ilusão da sua própria importância no mundo

sigo tentando romper com minhas amarras ilusórias, mas da sua importância no meu mundo não escapo 

da forma como você veio e me moldou para além do que posso conceber 


seus poemas, os rascunhos no caderno

aquarelas do estudo de silhuetas e mãos 

a bolsa cheia de revistas e livros 

(muy pesada) 

pendurada numa cadeira naquele à kilo perto da sua casa em 

copacabana 

suas reclamações sobre a textura do seu cabelo que 

no pós quimio

se metamorfou do cacheado para o liso (e como você o detesta assim) 


escrevo em sua homenagem 

minha maior líder de torcida que me ensina 

o poder do saber, das palavras e da determinação 


escrevo também porque não quero esquecer 

porque a passagem do tempo me assusta 

e quero reconhecer que hoje carrego tudo aquilo

 que vi você ser 

que você me ensinou como valor 


escrevo também porque meu luto não é tempestade 

muito menos rio 

é mar e chega em ondas 

é um luto não só pela morte, 

um luto por ver que o mundo é arrebatador em seguir 

em frente 

sem você 


escrevo porque desejo registrar que 

batalho para existir 

e assumir a pele da mulher que sou 

que traz na força da palavra 

um pouco (ou um tanto até) da minha querida

tia 


escrevo também para sempre lembrar dos lugares que você aposta

(e tem muita fé) que irei chegar


obrigada, tia

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